À luz do tempo

Foi gratificante experimentar o ar gelado do outono me sugerindo um autoabraço, enquanto eu procurava uma posição confortável para o meu pescoço. Eu queria estar à vontade para apenas encontrar o céu. O lençol azul marinho se estendia generoso e estampado sobre a cidade, e ela, em reflexo, respondia com suas luzes postas.

Depois de testar ângulos diferentes que não fossem rasgados pela iluminação do poste, encontrei um canto favorável à observação. A chuva de meteoros de Líridas riscaria a madrugada de quarta, trazendo um pouco de ar fresco para os nossos pulmões sôfregos de ansiedade, devido à pandemia do novo coronavírus. Bom, era uma programação diferente da habitual, pelo menos aos plantonistas insones que não dormiam tranquilos na noite da ignorância. Ou àqueles que são os da primeira manhã, que após o sono dos justos, testemunhariam a saudação do cosmos a mais um dia de trabalho.

Após achar um bom lugar de frente para o cruzeiro do sul, mergulhei na música que tocava no fone de ouvido e relaxei. Nada cruzava o firmamento, a não ser meus olhos. Nem aves ou aeronaves, somente eu ali, fitando o passado. A luz que chega até nós vindas daqueles pontinhos estelares é de um ontem tão distante que nunca amanhece. Cogitar o momento presente daqueles corpos me faz lembrar que alguns deles talvez nem existam mais. Olhar o passado presente nas estatísticas da pandemia nos desconcerta: dados de acontecimentos referentes a duas ou três semanas atrás tomados como “atuais”, enquanto outros tantos números se perdem no breu das subnotificações de tendências exponenciais, que como as luzes tardias que se apagam no infinito, são camuflados aos olhos nus e meramente humanos.

Eu não via nenhum meteorito cair, mas eu sabia que passariam por lá. Assim foi todas as vezes que quis assistir ao evento. Ora as nuvens, ora a chuva, ora a altura da hora, não importa o impedimento, eu não alcançava o meu objetivo, ano após ano. Era como uma promessa que não conseguia se cumprir, parecia um conto, uma ficção. Minha fé seguia viva no fenômeno, embora para muitos, sem o concreto, não há crença. E da mesma forma que a névoa incandescente da metrópole me roubava o manto negro do espaço e as chances de sucesso, a calmaria da dor invisível de uma pandemia aparentemente “distante”, contada nas telas, distraia a multidão da escuridão da morte, onde quer ela que houvesse.

Para lidar com a minha frustração momentânea, avaliei se eu não estaria procurando no lado errado, se distraída ao trocar de música no dispositivo, as estrelas cadentes, sorrateiras, me fintassem o olhar. Houve uma vez, sem nenhum plano ou preparo, sem data, sem cadeira de praia ou colchonete, sem luneta ou lua nova, ao sair para por o lixo para fora, na velocidade de um relance, vupt! Uma estrela caiu. Logo me apressei e guardei o meu desejo, com os olhos bem apertados, como se essa compressão urgente fosse capaz realizá-lo. Teria sido eu atraída àquele evento? Talvez eu tenha aumentado a minha sorte num ato de disciplina, pois, desde criancinha, sob qualquer pretexto, visitava o quintal todas as noites para buscar o céu.

Cada um de nós faz o seu próprio caminho. E alguns, levados pelo desejo abafado de vivenciar, persistem convictos em si mesmos e alheios aos alertas e orientações da mãe amorosa, do pai cauteloso, do amigo carinhoso, do professor zeloso, da ciência especialista, da lei que orienta, da razão que norteia e de todos os entes responsáveis, incubidos do dever de cuidar. São estes que teimam os que demandam inconscientemente a tatuagem da experiência, por mais áspera e dolorida que ela seja, para introjetar o sentido do conhecimento e transformá-lo em sentimento. Inevitável é a queda das águas que bailam à beira do abismo antes de se transformar em cachoeira e ir regar outros remansos.

Foram quarenta minutos velando o céu até eu entender que o evento agendado da quarentena não me vestiria tão bem quanto as cobertas quentinhas e o abraço do meu companheiro. Voltei para a tranquilidade e o conforto do quarto, sabendo que horas depois eu me serviria da claridade e do calor da nossa estrela-mãe à intimidar o frio suave do outono, no nosso presente vívido e concreto. Ao inverno do porvir, a temperatura de sua véspera.

Antes de entregar o corpo ao repouso e os olhos aos sonhos, fiz um pedido com a força de um coração que batia bem apertado: era uma oração.

 

“Com tato em tela” – Artigo Revista Dispositiva

COM TATO EM TELA: afetos e artefatos maquínicos 

Por Patrícia Rocha 

Mestre em Comunicação Social pela PUC Minas, professora e artista

Resumo: O presente artigo busca refletir sobre as relações afetivas mediadas pela tecnologia na contemporaneidade. Em um período ditado pela sobreposição de códigos de relacionamentos produzidos durante o processo de mediação tecnológica, o mapa signico para o rastreamento das manifestações ditas de afeto provavelmente advenha da chamada força bruta indicial da emoção presentificada nessas comunicações. 

Palavras-chave: Afeto, tecnologia, artefatos, redes, mediação, subjetivação, percepção, presentificação da experiência. 

Abstract: This article aims to reflect on the affective relations mediated by technology in the contemporary world. In a period dictated by the overlapping of codes of relationships produced during the process of technological mediation, the signal map for the tracing of affection manifestations derives from indicial gross force of the presentificated emotion in these communications. 

Keywords: Affection, technology, artefacts, webs, mediation, subjectivation, perception, experience presentification. 

1. Introdução 

Que relação haveria entre as tentativas de estabelecimento de contato (comunicação ou interação em níveis avançados) com inteligências extraterrestres apresentados em filmes de ficção científica e as interações de relações afetivas mediadas por tecnologia na contemporaneidade? Talvez para alguns essa pergunta soe exagerada e dramática. Embora ainda não vejamos espaçonaves em formas de disco cruzando os céus com naturalidade – como foi imaginada em séries e desenhos animados, o século XXI apresenta traços que nos aproxima assustadoramente da realidade sugerida em criativos roteiros de cinema de ficção. 

O presente artigo busca fazer um paralelo entre os recursos de interatividade entre humanos e alienígenas – como os sinais audiovisuais de satélite, intervenções sonoras e luminosas – que aparecem nos filmes “Contato” (1997) e “Contato Imediatos do Terceiro Grau” (1977) e as relações afetivas mediadas por tecnologias de rede na contemporaneidade. A individualização excessiva teria transformado as formas de sociabilidade e as percepções de relacionamento afetivo de maneira que o acesso ao outro indivíduo tenha se tornado um desafio misterioso ou até mesmo um grande perigo – isso, apesar de toda a aparente segurança 

que a malha de filtros e informações sobre os usuários servidos pela rede venha a oferecer. Os dados disponíveis sobre gostos e preferências pessoais funcionariam, em tese, como uma aparente apólice de seguros, uma vez antecipariam possíveis surpresas que poderiam acontecer no enfrentamento de um encontro presencial. Contudo, as imagens, vídeos, preferências musicais de um perfil virtual não constituiriam um mosaico interpretativo com exclusivo fim de atrair a atenção do outro usuário, sem necessário compromisso com a verdade? Como se conformaria a sensação de segurança neste tipo de interação e mediação? 

2. Contatos em telas 

O filmes “Contato” (1997) e “Contato Imediato do Terceiro Grau” (1997) utilizam o som ou a música como interface primeira de comunicação entre as inteligências extraterrestres e a humanidade. Por trás da música enquanto código estaria a matemática como uma espécie de linguagem universal do espaço e da existência. 

No filme “Contato” (1997), a primeira percepção da existência de uma iniciativa de comunicação foi a frequência sonora captada pela cientista responsável pelo projeto SETI (antenas direcionadas para as galáxias em busca de sinais de rádio que representem um contato alienígena). No decorrer do processo de comunicação acontece a decodificação da onda em sinais matemáticos, números primos, que não seriam produzidos espontaneamente no universo. Neste mesmo processo de decodificação surgiu uma imagem da segunda guerra mundial que seria uma espécie de resposta a uma iniciativa da agência espacial americana, que teria mandado um disco de imagens do Planeta Terra em direção ao espaço sideral. Aquilo poderia significar duas coisas, um chamado de paz ou um chamado de luta. 

No filme “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977), a manifestação foi inicialmente “material”, uma vez as testemunhas interagiram visualmente com as naves alienígenas. Elas foram expostas a experiências de forte impacto emocional de maneira que informações foram inseridas em suas mentes sem que elas soubessem, reaparecendo depois em suas memórias paulatinamente. Essas memórias forneceram a imagem do local onde aconteceria um novo contato direto e mais elaborado. Nesse segundo momento, por exemplo, as notas musicais eram repetidas numa sequência fixa que, ao acelerar-se complexificava ou sinalizava o avanço do nível de interação. 

A música ou o som como interface de mediação produz uma “pré-sensação” de familiaridade, as notas musicais e escalas, que nos tocam de modo a parecer que converse diretamente com as nossas emoções. O som nesse momento tem uma característica indicial, está no lugar da Segundeza nas categorias de fenômenos de percepção de Peirce. O som chega causando uma identificação, uma afinidade ou repulsa, uma reação: 

Segundeza está nos domínios daquilo que chamamos de atual (=ato), de presencial, do visto, do sentido conscientemente, daquilo que percebemos sabendo dessa percepção. A Segundeza é algo do mundo que se impõe à nossa consciência, que se faz perceber de forma bruta por simplesmente estar lá, por se fazer presente. Isto é, a Segundeza é a categoria daquilo que sentimos existir. (PINTO, p.45, 2010) 

Quando os contatos estabelecidos pelas inteligências alienígenas se “materializam” na Segundeza eles estão se colocando para a cognição humana como uma espécie de verdade, de confirmação da experiência e vivência. 

Em nossas relações mediadas tecnologicamente, buscamos nos dispositivos formas e materialidades para as nossas interações e relações. A partir do momento em que elas são canalizadas em um dispositivo eletrônico de “curadoria” de relação e de estímulo visual, estaríamos buscando de alguma forma uma certeza para o investimento naquela relação ou a ilusão de vivência dessa afetividade? 

[…] a experiência reticular dos ambientes digitais constitui uma propulsão no sentido da singularização das experiências, isto é, uma manifestação do sensível em sua proximidade com os absolutos irredutíveis de uma zeroidade que não se alcança. Essa singularização oferece o tato, mais que a idéia do tato, o cheiro, mais que a idéia do cheiro, o tempo presente que sinto na carne, mais que uma idéia de tempo presente. Não é, aliás, o tempo presente que todos compartilhamos, é o meu tempo presente. (PINTO, p.8, 2010) 

A vida presentificada das redes sociais talvez cause a sensação de que estejamos vivos e/ou experienciando múltiplas vivências, mas não necessariamente acessando de fato aquilo que alguns objetivam buscar, que seria os afetos mais profundos. Seria o amor um sentimento indizível, situado na Primeireza (qualidade difusamente percebida de minha experiência) numa condição mais próxima de uma “zeroidade” ao invés da sensação de realização da Segundeza? Um terceiro (simbólico) funcionado como primeiro? Seriam as interfaces tecnológicas nossas naves espaciais para experienciar “materialmente” o denominado amor? Como funcionariam as redes sociais mediadas tecnologicamente no estabelecimento dessas relações? O que as evoluções técnicas nos dispositivos e aplicativos teriam a revelar? 

3. Interfaces de espaço e tempo e redes sociais 

Tanto no filme “Contato” (1997) quanto em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977) é observado o flerte com a física e a teoria da relatividade de Einstein, na qual o tempo e o espaço são variáveis relacionadas e deformáveis pela massa do astro e as forças gravitacionais. Em “Contato” (1997), o flerte aparece no trecho em que a pesquisadora faz a sua viagem espacial super acelerada através dos “buracos de minhoca”, hipotéticos túneis de deslocamento no espaço-tempo descritos por Einstein. Em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977), os passageiros humanos da nave alienígena que haviam desaparecido há anos da Terra retornaram ao planeta com a mesma aparência física de quando foram abduzidos. A viagem no espaço-tempo teria preservado a juventude dos viajantes enquanto o tempo na Terra avançou normalmente. 

A presença contínua da tecnologia no nosso cotidiano promoveu muitas transformações na nossa percepção de espaço e tempo, por exemplo, embora nem todas as pessoas parem para pensar nessas transformações, apenas as vivenciam. A Internet e os smartphones modificaram a maioria de nossas interações à distância. Já assistimos a duas gerações de tecnologia de rede (web 1.0 – dupla Orkut e MSN – e web 2.0 – Facebook e Whatsapp) nas quais podemos reconhecer modelos diferentes de interatividade. A multiplicidade de informações que podemos obter sobre lugares, pessoas, contextos são como “superpoderes” que outrora só seriam possíveis se realizássemos o sonho da telepatia ou da osmose de conhecimento. 

Os meios de comunicação e as tecnologias encurtaram distâncias físicas e o tempo de troca interativa. Aceleraram a vida desestabilizando os modos de experiências vigentes até então. Se a televisão interrompeu a tradição das conversas familiares, se o laptop individualizou o uso do computador da família, os smartphones e suas múltiplos aplicativos de redes sociais reduziram a quase zero a necessidade de longas conversas telefônicas, como podemos constatar em nossas experiências cotidianas. 

A popularização das tecnologias digitais introduziu a mobilidade em todos os planos de experiência. Com isso espaços que antes apareciam como referências totais passam a ser percebidos de formas diferenciadas para cada indivíduo em seu histórico de experiências. Almeida e Tracy (2003) citam De Certeau para repensar o espaço, no qual este seria constituído pelo cruzamento móvel de corpos e fragmentos. O chamado ciberespaço se 

configurou como uma ambiência de fluxo contínuo de conteúdo que contribuiu para os fenômenos de desterritorialização, termo que se aplica a objetos ou processos que cada vez mais operam de modo a transcender limites territoriais e identidades específicas: 

Trata-se de pensar o tempo e o espaço conjuntamente, e ambos como produtos de inter-relações, pois “uma vez superada a hipótese de que o espaço e o tempo são categorias mutuamente exclusivas, uma vez admitido que o espaço é composto por uma multiplicidade de histórias, percebe-se que nada poderia ser a um só tempo mais ordenado e caótico que o espaço, com todas as suas justaposições inusitadas e efeitos emergentes involuntários. (ALMEIDA & TRACY, 2003, p.28) 

As experiências interativas são continuamente atualizadas por novos formatos tecnológicos que produzem um aprendizado de códigos específicos que afetam as percepções e as disposições para as relações afetivas. As autoras resgatam Marc Augé e o conceito de Hipermodernidade para abordar esse acelerado e mutante processo interacional no qual a contemporaneidade seria marcada por superabundâncias: 

[…] a superabundância espacial caracteriza-se pela crise dos sistemas de referências baseados na ideia de totalidade, crise esta produzida pela diminuição das distâncias e pela facilidade de comunicação que dissolvem fronteiras materiais e culturais. A superabundância identitária, estreitamente vinculada aos processos apontados anteriormente, caracteriza-se pela individualização exarcebada das referências, o que tornou múltiplos e flutuantes os mecanismos de identificação tanto individuais quanto coletivos. (ALMEIDA & TRACY, 2003, p.32) 

Agamben (2009) já havia mencionado em seu entendimento do conceito de dispositivo que seriam disparadores de processos de subjetivação e dessubjetivação produzidas pelas relações os quais eles mediam: 

[…] as substâncias e os sujeitos, como na velha metafísica, parecem sobrepor-se, mas não completamente. Neste sentido, por exemplo, um mesmo indivíduo, uma mesma substância, pode ser o lugar dos múltiplos processos de subjetivação: o usuário de telefones celulares, o navegador na internet, o escritor de contos, o apaixonado por tango, o não-global etc. Ao ilimitado crescimento dos dispositivos no nosso tempo corresponde uma igualmente disseminada proliferação de processos de subjetivação. AGAMBEN, 2009, p.41) 

Podemos pensar nos smartphones, por exemplo, e a relação que este dispositivo tem no cotidiano, como ele insere práticas de comunicação através das interações nas redes sociais, desvinculando referenciais de tempo e espaço, uma vez que trata-se de uma “mídia locativa”, criando e articulando múltiplas subjetivações que irão conviver com tantas outras subjetivações oriundas de outros dispositivos que se sobrepõem. 

Visualizamos a evolução das interfaces das principais redes sociais de internet ao longo dos últimos doze anos como um exemplo da diversificação das formas de interação mediada por tecnologia. No início dos anos dois mil, a rede social Orkut juntamente com a interface de bate-papos MSN eram os líderes das interações até aproximadamente 2005, quando outras redes despontaram como MySpace e o Twitter. O Orkut tinha um formato baseado na interação em fóruns de debates, nos quais os conteúdos das interações ficavam armazenados por tema ou assunto e os membros dos fóruns formavam comunidades afins em torno de algum interesse comum. O Twitter2 com sua interface de atualizações contínuas em textos de poucos caracteres veio inaugurar a cultura da linha de tempo. Plataforma de comunicação constante, individual (não obrigatoriamente prevê a necessidade de diálogo). Quando o Facebook surgiu sua referência era a interface do Orkut. Porém, logo que foi constatado o sucesso do também rival Twitter, o Facebook absorveu a sua dinâmica de atualizações em forma de linha de tempo (timeline)3 e se tornou uma rede ego, individualista, pautada na exibição de uma narrativa que giraria em torno da própria vida transmitida para audiência, retroalimentada por um algoritmo que prioriza os usuários mais atuantes na prática de publicação de postagens. 

Diante desse apanhado, fazendo um paralelo sorrateiro com a teoria da equivalência de massa-energia de Einstein, nota-se que o algoritmo de algumas redes sociais proporcionaria uma relação de aceleração e “aumento de massa”: quanto maior a frequência de interação, maior a densidade informacional. Mas teria o aumento da interação uma relação direta com o sucesso das trocas afetivas entre estes usuários? Não necessariamente. Porém, certamente, uma repetição da frequência de contato promove algum tipo de padrão interativo que pode se alocar tanto na região do conforto quanto na de conflito, dependerá da profundidade ou intimidade presente no conteúdo trocado. 

Partindo dessa constatação, talvez o Orkut com seus fóruns virtuais possa ter gerado relações afetivas mais sólidas que redes sociais como o Facebook e outros aplicativos contemporâneos. Hoje já estamos transitando para uma terceira geração de tecnologia de rede 

social que promova camadas paralelas às redes mais populares, mas não menos bem sucedidas, como é o caso do Tinder. 

O Tinder é a interface contemporânea mais famosa para a mediação de relacionamentos ditos “amorosos”. A interface também possui características de rede Ego, dando prioridade às fotos e imagem do usuário. Ela possui filtros que já pré-selecionam o público que vai visualizar o perfil conforme as preferências cadastradas. Pode-se afirmar que o Tinder é uma espécie “Linkedin do amor”. As pessoas curtem o perfil daqueles candidatos que mais lhe interessam, ou seja, quanto mais curtidas mais qualificado se tornaria o usuário para uma possível interação ou futura relação, uma corrida da meritocracia do afeto. O “match” ocorre quando existe um interesse mútuo. E aí a interação salta para um nível mais elevado que é o de troca de mensagens ou pode avançar diretamente para um encontro. 

Em conversa empírica com usuários do Tinder, detecta-se que as trocas de mensagens se configuram como uma entrevista. Códigos de comunicação diferenciados por geração, pela interpretação de memes5 de rede são examinados num processo de verificação de compatibilidade e, ao mesmo tempo, análise de riscos. Segundo estes usuários não é tolerada a possibilidade de frustração. A qualquer sinal de incompatibilidade ou de futura rejeição o “candidato” é eliminado da corrida. 

4. Algumas conclusões 

As redes sociais mediadas tecnologicamente alteraram a percepção que tínhamos sobre as capacidades de nossas relações, ao possibilitarem a queda de barreiras de espaço e tempo, ampliando potencialmente a frequência de contato. Estas redes podem ter sido, em alguns casos, catalizadoras de relações afetivas bem sucedidas, bem como de muitos fracassos. 

Comparando os primeiros formatos de redes sociais como o Orkut com o Facebook , por exemplo, verifica-se que a aceleração da velocidade das informações circulantes nas linhas de tempos das redes contemporâneas teria aumentado o número de interações. O que podemos perguntar é se esse aumento teria causado um inchaço no volume interacional e não um aumento de densidade na qualidade destas interações. 

O Tinder, conhecida rede de relacionamentos íntimos virtuais que apresenta uma ambiente que oferece aos seus usuários aparentes garantias de se resguardar que a pessoa que ele busca se relacionar teria um mínimo de características que ele precisaria para que a relação seja bem sucedida em sua intenção. 

Bauman (2004) define que a era dos Amores Líquidos é um período do qual os indivíduos se colocam amedrontados em encarar os riscos de uma relação amorosa profunda e duradoura, com todos os custos do aprendizado do outro, a luta nos processos de transformação para manter os laços fortes e frequentes. Talvez seja mais cômoda a vivência dos choques das emoções das relações mediadas por aplicativos de relacionamento que assegurariam a fruição do prazer em detrimento da dor da construção de uma relação. 

O filme “Contato” (1997) encerra a experiência de interação com a inteligência alienígena como se fosse uma experiência de transcendência religiosa, ao mesmo tempo também científica, pois a cientista teria vivenciado uma viagem interdimensional. Contudo, esta viagem não pôde ser comprovada pelos cientistas que acompanhavam a experiência, uma vez aos olhos deles a espaçonave que ela embarcara apenas caiu no mar. A experiência presentificada pertencia apenas à ela que vivenciou o fenômeno, como se fosse um presente exclusivo para aquela pessoa que já teria em seu repertório de vivência a condição de extrair daquela experiência algum aprendizado para si. 

Talvez o amor não caiba cognitivamente em um mundo que precise transmitir publicamente todas as suas experiências. O amor seria uma vivência particular entre os agentes da relação. Bauman (2004) ao refletir sobre a afinidade a coloca como um construto daqueles que têm coragem de se arriscar no exercício da relação do convívio presencial com todos os riscos e benefícios que ele possa trazer. 

Até o momento, as tecnologias de interação ainda não substituíram completamente a experiência do encontro face a face em sua riqueza e complexidade, e talvez isso nunca venha a acontecer com total fidelidade. Contudo, a singularização das experiências produzidas nas frequências das curtidas, das postagens de imagens e outras formas de interações, gerariam no usuário uma sensação de sonho lúcido vivido intensamente na construção de “laços fortes” virtuais, na montagem de uma narrativa amorosa digital. Amor ou ficção? No mínimo, uma experiência que pode ser também prazerosa ou compensadora ao ego, pelo menos enquanto o ato de trocas afetivas materializadas nas linhas de tempo das redes perdurarem. 

Referências 

AGAMBEN, Giorgio. O que é dispositivo In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.28-50. 

ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de; TRACY, Kátia Maria de Almeida. Noites Nômades: espaço e subjetividade nas culturas jovens contemporâneas. RJ: Rocco, 2003. 

BAUMAN, Zygmunt. Amor Liquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. ed. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 190 pg. 

CONTATO. Direção: Robert Zemeckis. Warner Home Video ,1997. 1 DVD (150 min), NTSC, Color. 

CONTATOS Imediatos do Terceiro Grau. Direção: Steven Spielberg . 1977. 1 DVD ( 137 min.), NTSC, Color. 

MISTÉRIOS DO MUNDO. Entendendo a Teoria da Relatividade de Einstein. Disponível em <http://misteriosdomundo.org/entendendo-a-teoria-da-relatividade-de-einstein/>. Acesso em 4 de junho de 2016. 

PINTO, Julio C. M. Logos Sensorial. Contemporanea, vol. 8, nº2. Dez.2010. Disponível em <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/viewFile/4859/3600> Consultado em 18 de maio de 2016 

RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. (Coleção Cibercultura) 191 p. 

REVISTA ÉPOCA& NEGÓCIOS. Linha do Tempo: do Facebook ao IPO. Disponível em <https://www.tecmundo.com.br/rede-social/3667-a-historia-do-twitter.htm>. Consultado em 4 de junho de 2016. 

SIBILIA, Paula. Os diários íntimos na Internet e a crise da interioridade psicológica. Disponível em <http://antroposmoderno.com/antro-version-imprimir.php?id_articulo=1143>. Visualizado em 18 de maio de 2016. 

TECMUNDO. A história do Twitter. Disponível em <https://www.tecmundo.com.br/rede-social/3667-a-historia-do-twitter.htm>. Consultado em 04 de junho de 2016. 

TECHTUDO. Tinder ganha nova interface e mais recursos, como o envio de GIFs. Disponível em <http://www.techenet.com/2016/01/tinder-ganha-nova-interface-e-mais-recursos-como-o-envio-de-gifs/> . Acesso em 02 de junho de 2016. 

 

Fonte: http://periodicos.pucminas.br/index.php/dispositiva/article/view/P.2237-9967.2017v6n9p53

  • JUNQUEIRA, P. R. . Com Tato em Tela: afetos e artefatos maquínicos. Dispositiva – Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas , 2017.

escalando estrelas

o mês de outubro foi um dos meses mais quentes dos últimos séculos, desde quando começaram a contar. toda essa efervescência foi sentida dos poros à alma. ficar muito quente faz a fome viajar para longe e as pessoas se tornarem arredias, nervosas, intocáveis. a pele arde e os olhos, insones, também.todo movimento se torna lento, assim como o pensamento. porque precisávamos sentir tudo, porque precisávamos desacelerar e ver o quanto estávamos agitados e indiferentes uns aos outros, às águas, às matas.

nos últimos dias de outubro choveu. como quem dá um recado, sejam “bons meninos” que a água desce, o verde cresce e o céu volta a ser azul límpido sem ser sinônimo de tortura. o vento passa e o sono agradece. depois que choveu voltamos a dormir e a amar. amar como se o outro fosse a última tangerina do deserto, geladinha. a fome era de quem tinha atravessado o canal da mancha, ida e volta. a criatividade fluiu como a enxurrada que carregou carros rio abaixo. a chuva foi um tapa de luvas: “abram os olhos”.

no último dia de outubro, estiquei a canga no quintal para sentir e agradecer o vento. escalar as estrelas que pareciam ao alcance naquele céu azul marinho profundo e límpido, com a lua meio-queijo de lamparina. a constelação de órion que observo desde menina estava logo ao lado, no seu “quadrado”. naquela noite eu nadei no céu. imaginei estradas invisíveis que os aviões cortavam. ouvi o barulho encanado da Cristiano Machado. o apito do trem. senti a brisa, vinda do além, até a coluna doer no chão duro. me despedi do cenário seguro com pesar, passando bem. dormir diante de tanta beleza parece até ingratidão. troquei a certeza do chão pelo colchão, olhando de olhos fechados, façanha, o céu dos sonhos, com paixão.

esca

as casas dos sonhos

antes de dormir faço um pedido em oração: quero visitar casas. gosto dos sonhos em que eu ando por casas e não somente nas ruas. nestes sonhos as casas não têm as portas trancadas, às vezes, elas ficam com a porta da frente totalmente abertas e na sala principal tem uma mesinha com uma jarra de água e café sempre pronta para as visitas e transeuntes. um amor espontâneo.

lembro-me de ao caminhar por (d)entre as casas reparar nos jardins bem cuidados e floridos: tropicais, japoneses, de todo tipo, quase sempre mixados, impuros, exuberantes. eles se impunham no caminho e trajeto. os jardins entravam dentro das casas por vasos, xaxins e pelas janelas. as casas tinham tapetes e cortinas de cores fortes, sofás disponíveis para quem quisesse descansar e sempre, sempre uma alma feminina ou paternal que receptivos apontavam o lugar de descanso ou de prosseguimento.

o que mais me divertia, além do carinho dos donos ou visitas presentes nas casas eram as arquiteturas que assim como os jardins não se fixavam em nenhum estilo… janelas coloniais, portas de grossas espessuras, casas modernas (pastilhas, pedras rosadas, laranjas, azulejos coloridos), todas tinham personalidade, todas me diziam de algo um pouco, todas me propulsionavam a seguir e a descobrir mais sobre aqueles adoráveis desconhecidos e suas casas-passagem aconchegantes.

Tempo e Percepção

Ontem estávamos conversando sobre a mudança da nossa percepção sobre o tempo. Quando criança, tínhamos a impressão que um ano durava uma eternidade para passar. Já me justificaram que esta impressão está relacionada com a diferença das responsabilidades que tínhamos com as que temos quando adultos, fora as transformações econômicas e tecnológicas que modificaram a rotina de todos que têm uma vida urbana nestes últimos trinta anos.

Existe um palpite de que essa modificação perceptiva também seja física, mas que a ciência ainda não desdobrou este mistério. Em alguns momentos, eu penso se tratar da mesma diferença perceptiva espacial que acontecia quando éramos pequeninos e víamos o pátio da escola tão extenso quanto a um campo de futebol profissional. Talvez nessa comparação ingênua possa estar mesmo presente uma das variáveis da complexa equação.

Eu concordo um pouco com todas as opiniões a respeito e arrisco um componente à parte que interage não somente cognitivamente, mas fisicamente na equação perceptiva: a emoção.

Aliás, a emoção tem sido a pedrinha giratória dentro do meu tênis apertado. Ela ora cai pro dedão, onde consigo isolá-la num canto e caminhar com incômodo, mas caminhar. Porém quando ela encaixa no tornozelo o calcanhar ressente. Daí é feita a bolha que me prende em um imenso desenrolar de pensamentos.

Com pesquisas, leituras e após muitos documentários científicos, esse novelo vira uma meia que abriga, ainda que temporariamente, a pedrinha, impedindo ela de rolar travessa e fazer cócegas ou causar incômodo maior. Quando a conversa chega no chat ou na mesa com amigos a pedra vira um pico a ser vencido e passa a incomodar silenciosamente e, de forma imponente e ameaçadora, a mente daqueles que se entregam ao mistério.

No final do bate papo que durou horas, embora tenha parecido minutos, brindamos nossa angústia disfarçada com um até amanhã, uma pergunta sobre um placar de futebol ou a próxima estréia do cinema. O intervalo entre o colchão e o café da manhã é ínfimo e a distância da casa ao trabalho é o dia inteiro. Para viajar no tempo hoje não precisamos de sonhar com uma DeLorean acelerando, basta dois cliques de mouse e um microprocessador multicore e lá estará presente, o seu passado. Parece que foi ontem.

(30/12/2014)

Imagem: Katie Grinnan

Emoções Líquidas

Os sentimentos me invadem de forma repentina. Como aquela onda fria que toca os dedos do pé na caminhada tímida na praia, rumo ao mar. E como ondas, a sensação de preenchimento e dúvida vai ganhando meu corpo, mudando a sua temperatura, causando arrepios, expandindo a pele ao mar, doçura, choque térmico, energia cinética, informação. Inevitavelmente eu bebo sentidos estrangeiros sem sequer abrir a boca, deglutir, rir ou chorar. Apenas suspiro, como quem toma fôlego e precisa de um espaço para racionalizar aquelas informações apressadas, interpretadas pelos porões do inconsciente, deixando cada pêlo do corpo em riste.

Não foi nenhuma declaração amorosa, nenhum toque, apenas a presença e a fala. Uma fala ordinária e espontânea do cotidiano se derramou em meu interior que parece desmoronar no esforço da tradução. Uma fala e nenhuma conexão com a onda de informação. Uma fala e um cheiro na língua. Por um milésimo de segundo meu mundo estava escancarado, havia deixado as portas abertas, nenhum sistema de segurança ou alarme, eu ouvia pelo nariz, eu sabia de olhos fechados, eu apalpava com os ouvidos, eu sabia sentindo, sem palavras. Sem revelações, catarses. Eu sentia o outro. E o outro, um desconhecido casual, um transeunte em tormenta emocional que se prestou a alguns segundos de desabafo, descontentado pelo mau funcionamento do sistema de trânsito, caótico, tais quais as informações sensíveis que me transmitira.

Não me perguntem como ou porque, nem qual certeza eu tenho, pois não sei nada a respeito disso. Não posso verbalizar o que não é meu e aparece assim em mim, sem ser chamado. Eu tento ler, mas sinto-me falível, afinal será apenas uma interpretação, distante de qualquer maior verdade.

Foi assim, numa tarde quente de verão, em meio a um trânsito caótico que eu comecei a beber as pessoas.

(30/12/2014)

Relacionamento é que são Elas

 

por Patricia Rocha

 

Em um verão quente, seco e sem mar – pelo menos para mim que não tive férias e moro longe da praia, o jeito foi assistir filmes para matar o tempo livre e não pensar no calor. No cinema, blue ray ou no computador, percorri vários títulos interessantes, mas dois em especial chamaram-me a atenção, justamente pelos pontos que possuem em comum, pontos talvez não tão perceptíveis em um primeiro momento, mas me entrego à missão de entrelaçá-los ou traçar paralelos aqui. É recomendado que os leitores tenham assistido aos filmes, pois o que se desenrola aqui embaixo é uma reflexão sobre os seus conteúdos com direito a muitos spoilers.

Um dos filmes em questão foi aclamado em Cannes e indicado para inúmeros prêmios em diferentes festivais, entre eles “melhor filme” e “melhor atriz”, mas acabou passando batido no Oscar: Ferrugem e Osso (De rouille et d’os), produção francesa de 2012 dirigida por Jacques Audiard e protagonizada por Marion Cotillard e Matthias Schoenaerts. O outro é Ela (Her), um dos candidatos ao Oscar de 2014, dirigido por Spike Jonze e estrelado por Joaquim Phoenix, Amy Adams, Rooney Mara e Scarlett Johansson (voz).

De formas diferentes, ambos os filmes tratam de relacionamentos frustrados ou sofríveis, da falha de comunicação ou da dificuldade de transcendência e, por que não, de uma silenciosa crise de afetividade presente na contemporaneidade – ainda que representada pelo “futuro”, no caso de “Ela”? São ficções que flertam com o romance e o drama, mas estão travestidos de melodrama (Ferrugem e Osso) e ficção científica (Her). Com poéticas direções de arte, os dois filmes dependeram muito da atuação sensível e minuciosa de seus protagonistas e foram bem sucedidos nesse quesito, um deslize poderia ter colocado em descrédito seus personagens e o enredo, o que não aconteceu.

“Ferrugem e Osso” conta uma história de superação e redenção a partir da relação de um casal improvável: um ex-lutador de box tailandês – Ali (Schoenaerts) – e uma adestradora de orcas – Stéphanie (Cotillard), que sofreu a amputação de suas duas pernas abaixo do joelho depois de um grave acidente de trabalho. O que se desenvolve é um processo de cura e superação de cada um dos dois em suas dificuldades pessoais, movidos pela cumplicidade e apoio, mas de uma maneira casual e pouco romântica, expondo tanto a intimidade que cresce quanto as feridas mal curadas. A relação só progride na base do enfrentamento do medo e da dor, a coragem é o que sustenta essa parceria e as ações substituem o diálogo. Nos seus embates físicos e psicológicos ambos se reconhecem e se respeitam, com poucas palavras constroem entre si a ternura, mesmo que esta não fizesse parte nos planos da razão.

“Ela” também aborda um romance estranho: um escritor de cartas sensíveis para terceiros – Theodore (Phoenix) e um sistema operacional autônomo e inteligente que se autodenomina Samantha (Johansson). Theodore estava deprimido e solitário, passando por um processo de divórcio indesejado e sem volta quando descobre a tecnologia do OS1, o sistema operacional inteligente. Samantha se apresenta como uma grata surpresa, entusiasmada, divertida, cúmplice, o ajuda a superar os maus bocados de sua separação e a reconstruir sua auto-estima, reorganizando a sua vida profissional e até afetiva.

Depressão, cumplicidade, encorajamento e muitas palavras. Aqui um contraste entre os filmes. “Ela”, assim como “Ferrugem e Osso”, é um filme que diz muito pelo visual, mas ao contrário do primeiro tem no vasto diálogo sua principal âncora de reflexão. No filme de Audiard os diálogos não são pouco importantes, são crus e árduos como o próprio filme e enredo, quase possuem textura física, mas não funcionam se não costurados aos outros elementos (arte, montagem, trilha sonora). Os corpos se tocam, se contorcem, se ferem, se esfregam, se amam. Escutamos ruídos, gemidos, silêncio e música pop, a apreensão do filme é um quebra-cabeças que exige mais de uma sessão de degustação, embora o amargo sabor de ferro. Em “Ela” temos também música pop, mas primordialmente as reflexões são ditas. E são tão presentes e tão bem costuradas com as informações visuais que o replay se dá por prazer, tão doce e perigoso quanto bala soft (aqui os que nasceram nos anos 80 devem se lembrar da balona deliciosa, colorida e escorregadia que engasgava as crianças). Sim, “Ela” pode deixar muito marmanjo engasgado…

Gênero e corporeidade são temáticas abordadas direta e indiretamente nas duas películas. Stéphanie e Theodore são os “curados” por suas mutilações físicas e emocionais. Ambos estavam acostumados com os seus trabalhos a lidarem com a comunicação, no caso de Stéphanie, a gestual (adestramento), no de Theodore, a escrita. Ali e Samantha são os agentes de cura que se transformam e crescem com suas relações. Stéphanie aprende a viver com a sua amputação, a se sentir capaz, motivada, atraente, novas formas de fazer sexo, uma nova “profissão” (agente de lutas). E como mulher, aprende – não sem dor e desencontros, o idioma masculino das ações e da linguagem corporal, sem falar do machismo manifestado por Ali em vários momentos, como na forma em que leva suas relações casuais, apenas interessado na satisfação sexual. Theodore experiencia fisicamente a sua relação virtual ao sair pelas ruas com seu Sistema Operacional ligado, o casal performa uma relação amorosa através do diálogo. E fiel à virtualidade de sua relação parece evitar o contato físico com outras mulheres, seja com a “candidata a caso” ou com a “parceira-física-avatar”, todas indicadas por Samanthas em momentos e circunstâncias diferentes. E seria o corpo o legitimador de emoções? O que importaria mais, a forma mediadora ou a vivência destas emoções? Entre a super inteligência racional e questionadora de Samantha e o corpo de Theodore, quem é o mais masculino nessa relação? As suas cartas são tão sensíveis que conseguem tocar o coração de seu colega de trabalho que declara que Theodore possui uma “garota” dentro dele. Em vários momentos de “Ela” acontecem provocações sobre os papéis de gênero: as falas do alienígena misógino do joguinho, o jogo feito por sua amiga (Adams) que treina mulheres para serem “mães perfeitas”. O filme desafia a reflexão, quem são mais programados, os humanos orgânicos e seus papéis sociais ou as máquinas imateriais e seus algorítimos?

Tanto no filme de Audiard quanto no de Jonze existem figuras que completam o tripé das relações ou são o gatilho para a catarse final. Em “Ferrugem e Osso” esse é o papel de Sam e, mais de leve, da irmã de Ali. Em “Ela” cabe à ex-esposa e em menor proporção, à melhor amiga que é o espelho. Nos dois filmes o sol aparece como uma perspectiva de renascimento e cura. A água é o ambiente das catarses (mais presente no filme francês). As trilhas sonoras ilustram e dialogam com os pontos cruciais dos filmes. As emoções expressas da forma que for, física ou verbalmente são as molas mestras das duas películas.

Em tempos de crise econômica no velho e no novo mundo, uma época em que as relações pessoais estão cada vez mais mediadas pela tecnologia, o trabalho e as cobranças por eficiência e perfeição afasta, silencia, padroniza o comportamento e as relações das pessoas que se afastam de sua humanidade e desaprendem a se comunicar. As interações se perdem em fórmulas ou espaços sem tradução. Afinal, as emoções precisam do corpo para serem aprendidas?

Em ambos os filmes, as relações reclamam ações efetivas para serem sustentadas e estas ações não se resumem numa carta de intenções, mas de vida vivida e experienciada com todas as dores e mutilações que o corpo e a mente costumam estar sujeitos: a vida não se constrói sem perdas. “Ferrugem e Osso” e “Ela” são belas películas que encorajam a coragem de viver, esbanjam poesia e sensibilidade e te fazem pensar por uns dias.

A selva do outro

 

 

 

O outro é a própria selva a se desbravar. Parece que espelhando nossa mente veremos o outro, mas é “ele” quem se vê em nós. Vê seus medos, vê sua raiva, vê a rejeição por algum desejo, alguma atitude que esperava de nós e não cumprimos. Somos uma selva a ser vencida e disciplinada segundo o olhar do outro. Mas não há facão que abra uma trilha nessa mata sem agredir e deixar marcas, sem deixar calos no agressor. E sem ele interromper a violência para tentar entender a penumbra. Sem se dar tempo para identificar as silhuetas e o traçado da trilha. É preciso olhar diferente o outro e perceber o comum na sombra. Entender essa miopia entre pares quando um espera e não alcança. Entender que nem todo silêncio é vácuo e nem todo espaço é distância. Pelo contrário, o intervalo é o arauto da distinção, a chave da compreensão. O outro está logo ali e sedento de afeição tanto quanto nós. O que queremos é compreensão e amparo. E compreender implica em saber trocar de lugar, se colocar no contexto desse outro, entender suas razões e seus equívocos, se ver neles e superá-los. A selva do outro não abre clareiras para quem quer incendiá-la, se assim for, ela morre para o algoz. Mas, se ao invés de impormos, ouvirmos e entendermos, as sombras se entregarão ao sol. Não haverá mistérios, nenhum lugar pra se esconder.

(21/3/14)

Imagem: Henri Rousseau –  “Il Sogno”

Querer dizer

A rede social na internet se resume em um grande querer dizer. As pessoas estão o tempo inteiro querendo dizer e significar os seus sentimentos, produzindo um noticiário de suas rotinas, pensamentos, dos pontos-de-vista sobre os fatos corriqueiros ou de interesse coletivo, tudo de forma dinâmica e contínua. O “quero dizer” no dito popular se apresenta também com o sentido de correção de algo mal expresso ou mal interpretado. E não se trataria disso tudo afinal? De um grande desentendimento? O discurso em poucos caracteres é por si só limitado, as interações mediadas tecnologicamente, apesar dos múltiplos formatos que se ofereçam, ainda são incompletas. A rede social diz e se “desdiz” a todo o momento. No montante das discussões e dos enunciados prevalecem os ruídos das distorções, que não são distantes da dinâmica “da vida como ela é” no universo ordinário do tete à tete. Entre os picos e os vales de contentamento, a “civilização” avança…

Ultimamente tenho apreciado o silêncio, ao menos, o meu silêncio. O volume de vozes advindas das interações proporcionadas pelas tecnologias de rede tem gerado um ruído branco no qual eu procuro sentidos, mas percebo mesmo a opacidade dos excessos. Ruído branco, segundo engenheiros de áudio, é “um tipo de ruído produzido pela combinação simultânea de sons de todas as frequências”. A saturação produz uma massa sonora ininteligível. O silêncio seria a quebra, o intervalo para o entendimento. É isso, deu branco! E na calma da sala branca saturada, em silêncio, eu me dispus a construir o meu próprio mosaico do entendimento sobre a ânsia do outro e seu “querer dizer”, ainda que nas entrelinhas. Ânsia que por vezes me contamina e a qual eu luto e fracasso neste instante.

Sabemos que nosso pensamento é contínuo e as redes sociais da web 2.0 se configuraram como uma plataforma do “pensar alto”. Na malha telepática da internet, o desafio é como editar a qualidade desse pensamento que se manifesta. Não importa a faixa etária, muitos a utilizam como um muro de lamentação, como um diário ou sala de terapia: o lugar de botar para fora, desembuchar. Outra maioria quer impor o que pensa. Outros tratam o perfil como um espaço de marketing. Não veste somente a camisa do próprio ego, às vezes forjado, mas a estende no varal do trabalho. Não acho necessariamente impróprio, pode ser uma necessidade imposta, mas vale o cuidado com a crise de múltipla identidade, incoerências que um minuto de conversa revelam.

Têm os que não querem dizer nada ou querem dizer nas entrelinhas para grupos. “Menes” (memes) da ironia nos códigos de amigos, desdizer para se fazer entender no simples prazer do cortejo do sarcasmo com o desentendimento: feliz de quem ri primeiro. Perspicácia ou adolescência? “Orgulho e preconceito” por aceitação…

Entre os que querem dizer muito e os que não necessariamente querem dizer alguma coisa, entre a pretensão de manipular o entendimento do outro ou de se divertir com essa (auto-?) ilusão, eu prefiro o delay do pensar dez vezes se é isso o que eu quero. Prefiro o silêncio de uma imagem, o desenhar de uma música ao desdenhar do outro (ou de mim mesma). Brincar com o ardor alheio não é um sopro de inteligência na própria ferida, embora infle muitos egos. Brincar com a própria tragédia é uma saída até elegante, embora um disfarce. A arena social, seja online ou pessoalmente, é um campo de contínua disputa colaborativa: salve-se quem puder. E que um dia salvem-se todos, eu torço por isso. A coerência entre o verbo ser e estar é o maior desafio da humanidade, quando ela a alcançar em sua plenitude será feliz (ou satisfeita), enfim. Há quem duvide desse dia.

O que quero dizer, neste momento, é que vou me fazer (des)entender permanecendo mais vezes e mais tempo com a solidão branca do meu silêncio. Em algum lugar deste limbo, através de todas as vozes, distinguo melhor a minha voz.

Amanhã será outro dia

(18/3/2013)

Imagem: Taekyeom Lee

Crítica musical e recomendação no tempo das redes

Crítica musical e recomendação no tempo das redes

Por Patrícia Rocha

A crítica musical, para muitos, sempre foi um importante referencial para a escolha de um álbum ou artista em uma primeira apreciação. Jornalistas, profissionais da música e escritores marcaram época com suas análises e ponderações sobre obras ou performances de palco. No século XX, em especial, quando as artes ganharam visibilidade midiática e os músicos status de popstar, revistas e colunas especializadas se multiplicaram e a crítica tornou-se protagonista de uma relação de instável cumplicidade entre críticos, artistas e  público.

O tempo passou e a tecnologia ajudou a transformar as formas de fazer música e também as formas de comunicação e interação social.  Quando as redes digitais emergiram materializadas pela Internet e outros aparatos tecnológicos, as pessoas passaram a ter mais autonomia na busca de informação e na produção de conteúdo. As revistas especializadas passaram a conviver com os blogs e redes sociais. Muitos se arriscaram a dizer que o poder da crítica foi diluído. Porém, mais do que nunca, talvez o crítico tenha agora a responsabilidade de um papel mediativo ainda mais significativo e não menos árduo: nortear uma multidão em rede em meio a milhares de opções de escuta, novos estilos, gêneros, sonoridades e especialmente, as novas formas de recomendação musical. Para isso é preciso entender as transformações práticas ocorridas nestes últimos vinte anos.

Antes da década de 90, o acesso a lançamentos musicais era bastante controlado pelas gravadoras. Os críticos dos veículos das grandes mídias costumavam receber estes lançamentos antecipadamente com exclusividade, pois eram os responsáveis pela análise e crítica das obras. Depois da popularização tecnologia P2P (peer to peer) e da troca de arquivos .mp3 na internet, não há mais essa exclusividade. Graças a esta facilidade de acesso, os blogs, associados às redes sociais de música como o MySpace e Last.fm,, foram os protagonistas da transformação do sistema de recomendação musical antes vigente.

Se o MySpace foi o primeiro serviço a mobilizar a rede em torno da música, a hospedar músicos e ouvintes e a articular a interação entre os mesmos, o Last.fmpropôs um formato inovador, no qual os hábitos de escuta são registrados em tabelas estatísticas e comparados entre usuários “amigos”, gerando uma escala de compatibilidade de “gostos”. Outra novidade que o Last.fm apresentou é o sistema de “tagueamento”. As “tags” são como âncoras marcadoras que fazem um papel de filtragem semântica e permitem uma série de possíveis associações de dados através de algorítimos que virão a combinar ou relacionar informações em uma página, tabela ou índice. As “tags” aparecem como “impressões” particulares que utilizam tanto gêneros e estilos musicais quanto outras associações qualitativas como cor, estado de humor para caracterizar aquela faixa, álbum ou grupo musical. O usuário ganhou assim liberdade de articular suas impressões, classificá-las e recomendá-las como bem entender.

As novas práticas aprendidas através do uso desses serviços e suas interfaces propõem uma experiência diferente de escuta musical ao estimular a afinidade em rede como um fator motivacional para uma pesquisa de escuta compartilhada. Dessa forma, os “playlists” que registram as audições ou seleções musicais dos usuários passaram a ser um índice de consulta tão poderoso que vários serviços surgiram baseados nesse modelo, entre eles podemos citar o blip.fm e o lala.com. Este último, inclusive, foi comprado e fechado pela Apple para que seu modelo sirva de base para a nova interface em do iTunes. Com os seus playlistspersonalizados, os usuários querem mostrar o que ouvem e querem ser influentes com suas recomendações. Muitos conquistam popularidade e prestígio em seus perfis, agregando muitos “amigos” ou “seguidores”. Essa popularidade pode ser lucrativa para alguns serviços, o lala.com, por exemplo, vendia os playlists mais populares. O usuário-ouvinte tornou-se mais do que um “recomendador”, mas um garoto propaganda do produto “música” na rede. Irresistível pensar na pergunta: seria esse um novo modelo de “Jabá”?

Embora esses formatos interativos sejam fontes ricas para muitas questões ainda em aberto, a prática de recomendação entre os usuários não impede que a crítica ocupe seu espaço de valor. A prova disso é a grande popularidade do Pitchfork.com, site de resenhas musicais e entrevistas focado principalmente no mercado de música independente. Fundado em 1995, nos primórdios da internet, o site acompanhou a evolução das tecnologias de web e sua atual configuração só comprova a força do playlist: os usuários têm acesso a uma lista que indica quais são os “melhores” álbuns e lançamentos do momento. Outras listas incluem os melhores discos de cada década eleitos pelo site, organizadas talvez com um objetivo mais formativo. As resenhas são feitas por colaboradores, geralmente músicos, blogueiros ou jornalistas convidados pelo staff. O conteúdo é interessante, oferece espaço para grupos e trabalhos outrora obscuros e trazem muita música experimental, eletrônica, folk e outros novos “estilos” alocados em alguma hibridação entre rock, hip hop, jazz ou subgêneros da eletrônica.

Enfim, o que podemos concluir é que o usuário das redes tem à sua disposição muitas ferramentas de pesquisa e consulta e toda uma nova cultura de escuta erecomendação pela qual pode abrir seu leque de conhecimento e gosto musical. Os blogse redes sociais alimentam esse fluxo cultural e também a curiosidade daqueles mais interessados nesse tipo de conteúdo. Toda essa abertura e acesso podem ser usados de forma positiva pelos críticos e formadores de opinião, pois as redes são paramentadas de ferramentas eficientes que ativam o trânsito da informação e as distribuem em instâncias consolidadas de mediação. Se existe muito conteúdo duvidoso na rede, a crítica aparece como fonte de boa informação musical nas quais seus autores adicionam sua experiência e conhecimentos técnicos e intelectuais que podem vir a fazer toda a diferença nas escolhas e experiências de escuta dos usuários de rede. O espaço está aberto!