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escalando estrelas

o mês de outubro foi um dos meses mais quentes dos últimos séculos, desde quando começaram a contar. toda essa efervescência foi sentida dos poros à alma. ficar muito quente faz a fome viajar para longe e as pessoas se tornarem arredias, nervosas, intocáveis. a pele arde e os olhos, insones, também.todo movimento se torna lento, assim como o pensamento. porque precisávamos sentir tudo, porque precisávamos desacelerar e ver o quanto estávamos agitados e indiferentes uns aos outros, às águas, às matas.

nos últimos dias de outubro choveu. como quem dá um recado, sejam “bons meninos” que a água desce, o verde cresce e o céu volta a ser azul límpido sem ser sinônimo de tortura. o vento passa e o sono agradece. depois que choveu voltamos a dormir e a amar. amar como se o outro fosse a última tangerina do deserto, geladinha. a fome era de quem tinha atravessado o canal da mancha, ida e volta. a criatividade fluiu como a enxurrada que carregou carros rio abaixo. a chuva foi um tapa de luvas: “abram os olhos”.

no último dia de outubro, estiquei a canga no quintal para sentir e agradecer o vento. escalar as estrelas que pareciam ao alcance naquele céu azul marinho profundo e límpido, com a lua meio-queijo de lamparina. a constelação de órion que observo desde menina estava logo ao lado, no seu “quadrado”. naquela noite eu nadei no céu. imaginei estradas invisíveis que os aviões cortavam. ouvi o barulho encanado da Cristiano Machado. o apito do trem. senti a brisa, vinda do além, até a coluna doer no chão duro. me despedi do cenário seguro com pesar, passando bem. dormir diante de tanta beleza parece até ingratidão. troquei a certeza do chão pelo colchão, olhando de olhos fechados, façanha, o céu dos sonhos, com paixão.

esca

as casas dos sonhos

antes de dormir faço um pedido em oração: quero visitar casas. gosto dos sonhos em que eu ando por casas e não somente nas ruas. nestes sonhos as casas não têm as portas trancadas, às vezes, elas ficam com a porta da frente totalmente abertas e na sala principal tem uma mesinha com uma jarra de água e café sempre pronta para as visitas e transeuntes. um amor espontâneo.

lembro-me de ao caminhar por (d)entre as casas reparar nos jardins bem cuidados e floridos: tropicais, japoneses, de todo tipo, quase sempre mixados, impuros, exuberantes. eles se impunham no caminho e trajeto. os jardins entravam dentro das casas por vasos, xaxins e pelas janelas. as casas tinham tapetes e cortinas de cores fortes, sofás disponíveis para quem quisesse descansar e sempre, sempre uma alma feminina ou paternal que receptivos apontavam o lugar de descanso ou de prosseguimento.

o que mais me divertia, além do carinho dos donos ou visitas presentes nas casas eram as arquiteturas que assim como os jardins não se fixavam em nenhum estilo… janelas coloniais, portas de grossas espessuras, casas modernas (pastilhas, pedras rosadas, laranjas, azulejos coloridos), todas tinham personalidade, todas me diziam de algo um pouco, todas me propulsionavam a seguir e a descobrir mais sobre aqueles adoráveis desconhecidos e suas casas-passagem aconchegantes.

Tempo e Percepção

Ontem estávamos conversando sobre a mudança da nossa percepção sobre o tempo. Quando criança, tínhamos a impressão que um ano durava uma eternidade para passar. Já me justificaram que esta impressão está relacionada com a diferença das responsabilidades que tínhamos com as que temos quando adultos, fora as transformações econômicas e tecnológicas que modificaram a rotina de todos que têm uma vida urbana nestes últimos trinta anos.

Existe um palpite de que essa modificação perceptiva também seja física, mas que a ciência ainda não desdobrou este mistério. Em alguns momentos, eu penso se tratar da mesma diferença perceptiva espacial que acontecia quando éramos pequeninos e víamos o pátio da escola tão extenso quanto a um campo de futebol profissional. Talvez nessa comparação ingênua possa estar mesmo presente uma das variáveis da complexa equação.

Eu concordo um pouco com todas as opiniões a respeito e arrisco um componente à parte que interage não somente cognitivamente, mas fisicamente na equação perceptiva: a emoção.

Aliás, a emoção tem sido a pedrinha giratória dentro do meu tênis apertado. Ela ora cai pro dedão, onde consigo isolá-la num canto e caminhar com incômodo, mas caminhar. Porém quando ela encaixa no tornozelo o calcanhar ressente. Daí é feita a bolha que me prende em um imenso desenrolar de pensamentos.

Com pesquisas, leituras e após muitos documentários científicos, esse novelo vira uma meia que abriga, ainda que temporariamente, a pedrinha, impedindo ela de rolar travessa e fazer cócegas ou causar incômodo maior. Quando a conversa chega no chat ou na mesa com amigos a pedra vira um pico a ser vencido e passa a incomodar silenciosamente e, de forma imponente e ameaçadora, a mente daqueles que se entregam ao mistério.

No final do bate papo que durou horas, embora tenha parecido minutos, brindamos nossa angústia disfarçada com um até amanhã, uma pergunta sobre um placar de futebol ou a próxima estréia do cinema. O intervalo entre o colchão e o café da manhã é ínfimo e a distância da casa ao trabalho é o dia inteiro. Para viajar no tempo hoje não precisamos de sonhar com uma DeLorean acelerando, basta dois cliques de mouse e um microprocessador multicore e lá estará presente, o seu passado. Parece que foi ontem.

(30/12/2014)

Imagem: Katie Grinnan

Emoções Líquidas

Os sentimentos me invadem de forma repentina. Como aquela onda fria que toca os dedos do pé na caminhada tímida na praia, rumo ao mar. E como ondas, a sensação de preenchimento e dúvida vai ganhando meu corpo, mudando a sua temperatura, causando arrepios, expandindo a pele ao mar, doçura, choque térmico, energia cinética, informação. Inevitavelmente eu bebo sentidos estrangeiros sem sequer abrir a boca, deglutir, rir ou chorar. Apenas suspiro, como quem toma fôlego e precisa de um espaço para racionalizar aquelas informações apressadas, interpretadas pelos porões do inconsciente, deixando cada pêlo do corpo em riste.

Não foi nenhuma declaração amorosa, nenhum toque, apenas a presença e a fala. Uma fala ordinária e espontânea do cotidiano se derramou em meu interior que parece desmoronar no esforço da tradução. Uma fala e nenhuma conexão com a onda de informação. Uma fala e um cheiro na língua. Por um milésimo de segundo meu mundo estava escancarado, havia deixado as portas abertas, nenhum sistema de segurança ou alarme, eu ouvia pelo nariz, eu sabia de olhos fechados, eu apalpava com os ouvidos, eu sabia sentindo, sem palavras. Sem revelações, catarses. Eu sentia o outro. E o outro, um desconhecido casual, um transeunte em tormenta emocional que se prestou a alguns segundos de desabafo, descontentado pelo mau funcionamento do sistema de trânsito, caótico, tais quais as informações sensíveis que me transmitira.

Não me perguntem como ou porque, nem qual certeza eu tenho, pois não sei nada a respeito disso. Não posso verbalizar o que não é meu e aparece assim em mim, sem ser chamado. Eu tento ler, mas sinto-me falível, afinal será apenas uma interpretação, distante de qualquer maior verdade.

Foi assim, numa tarde quente de verão, em meio a um trânsito caótico que eu comecei a beber as pessoas.

(30/12/2014)

Relacionamento é que são Elas

 

por Patricia Rocha

 

Em um verão quente, seco e sem mar – pelo menos para mim que não tive férias e moro longe da praia, o jeito foi assistir filmes para matar o tempo livre e não pensar no calor. No cinema, blue ray ou no computador, percorri vários títulos interessantes, mas dois em especial chamaram-me a atenção, justamente pelos pontos que possuem em comum, pontos talvez não tão perceptíveis em um primeiro momento, mas me entrego à missão de entrelaçá-los ou traçar paralelos aqui. É recomendado que os leitores tenham assistido aos filmes, pois o que se desenrola aqui embaixo é uma reflexão sobre os seus conteúdos com direito a muitos spoilers.

Um dos filmes em questão foi aclamado em Cannes e indicado para inúmeros prêmios em diferentes festivais, entre eles “melhor filme” e “melhor atriz”, mas acabou passando batido no Oscar: Ferrugem e Osso (De rouille et d’os), produção francesa de 2012 dirigida por Jacques Audiard e protagonizada por Marion Cotillard e Matthias Schoenaerts. O outro é Ela (Her), um dos candidatos ao Oscar de 2014, dirigido por Spike Jonze e estrelado por Joaquim Phoenix, Amy Adams, Rooney Mara e Scarlett Johansson (voz).

De formas diferentes, ambos os filmes tratam de relacionamentos frustrados ou sofríveis, da falha de comunicação ou da dificuldade de transcendência e, por que não, de uma silenciosa crise de afetividade presente na contemporaneidade – ainda que representada pelo “futuro”, no caso de “Ela”? São ficções que flertam com o romance e o drama, mas estão travestidos de melodrama (Ferrugem e Osso) e ficção científica (Her). Com poéticas direções de arte, os dois filmes dependeram muito da atuação sensível e minuciosa de seus protagonistas e foram bem sucedidos nesse quesito, um deslize poderia ter colocado em descrédito seus personagens e o enredo, o que não aconteceu.

“Ferrugem e Osso” conta uma história de superação e redenção a partir da relação de um casal improvável: um ex-lutador de box tailandês – Ali (Schoenaerts) – e uma adestradora de orcas – Stéphanie (Cotillard), que sofreu a amputação de suas duas pernas abaixo do joelho depois de um grave acidente de trabalho. O que se desenvolve é um processo de cura e superação de cada um dos dois em suas dificuldades pessoais, movidos pela cumplicidade e apoio, mas de uma maneira casual e pouco romântica, expondo tanto a intimidade que cresce quanto as feridas mal curadas. A relação só progride na base do enfrentamento do medo e da dor, a coragem é o que sustenta essa parceria e as ações substituem o diálogo. Nos seus embates físicos e psicológicos ambos se reconhecem e se respeitam, com poucas palavras constroem entre si a ternura, mesmo que esta não fizesse parte nos planos da razão.

“Ela” também aborda um romance estranho: um escritor de cartas sensíveis para terceiros – Theodore (Phoenix) e um sistema operacional autônomo e inteligente que se autodenomina Samantha (Johansson). Theodore estava deprimido e solitário, passando por um processo de divórcio indesejado e sem volta quando descobre a tecnologia do OS1, o sistema operacional inteligente. Samantha se apresenta como uma grata surpresa, entusiasmada, divertida, cúmplice, o ajuda a superar os maus bocados de sua separação e a reconstruir sua auto-estima, reorganizando a sua vida profissional e até afetiva.

Depressão, cumplicidade, encorajamento e muitas palavras. Aqui um contraste entre os filmes. “Ela”, assim como “Ferrugem e Osso”, é um filme que diz muito pelo visual, mas ao contrário do primeiro tem no vasto diálogo sua principal âncora de reflexão. No filme de Audiard os diálogos não são pouco importantes, são crus e árduos como o próprio filme e enredo, quase possuem textura física, mas não funcionam se não costurados aos outros elementos (arte, montagem, trilha sonora). Os corpos se tocam, se contorcem, se ferem, se esfregam, se amam. Escutamos ruídos, gemidos, silêncio e música pop, a apreensão do filme é um quebra-cabeças que exige mais de uma sessão de degustação, embora o amargo sabor de ferro. Em “Ela” temos também música pop, mas primordialmente as reflexões são ditas. E são tão presentes e tão bem costuradas com as informações visuais que o replay se dá por prazer, tão doce e perigoso quanto bala soft (aqui os que nasceram nos anos 80 devem se lembrar da balona deliciosa, colorida e escorregadia que engasgava as crianças). Sim, “Ela” pode deixar muito marmanjo engasgado…

Gênero e corporeidade são temáticas abordadas direta e indiretamente nas duas películas. Stéphanie e Theodore são os “curados” por suas mutilações físicas e emocionais. Ambos estavam acostumados com os seus trabalhos a lidarem com a comunicação, no caso de Stéphanie, a gestual (adestramento), no de Theodore, a escrita. Ali e Samantha são os agentes de cura que se transformam e crescem com suas relações. Stéphanie aprende a viver com a sua amputação, a se sentir capaz, motivada, atraente, novas formas de fazer sexo, uma nova “profissão” (agente de lutas). E como mulher, aprende – não sem dor e desencontros, o idioma masculino das ações e da linguagem corporal, sem falar do machismo manifestado por Ali em vários momentos, como na forma em que leva suas relações casuais, apenas interessado na satisfação sexual. Theodore experiencia fisicamente a sua relação virtual ao sair pelas ruas com seu Sistema Operacional ligado, o casal performa uma relação amorosa através do diálogo. E fiel à virtualidade de sua relação parece evitar o contato físico com outras mulheres, seja com a “candidata a caso” ou com a “parceira-física-avatar”, todas indicadas por Samanthas em momentos e circunstâncias diferentes. E seria o corpo o legitimador de emoções? O que importaria mais, a forma mediadora ou a vivência destas emoções? Entre a super inteligência racional e questionadora de Samantha e o corpo de Theodore, quem é o mais masculino nessa relação? As suas cartas são tão sensíveis que conseguem tocar o coração de seu colega de trabalho que declara que Theodore possui uma “garota” dentro dele. Em vários momentos de “Ela” acontecem provocações sobre os papéis de gênero: as falas do alienígena misógino do joguinho, o jogo feito por sua amiga (Adams) que treina mulheres para serem “mães perfeitas”. O filme desafia a reflexão, quem são mais programados, os humanos orgânicos e seus papéis sociais ou as máquinas imateriais e seus algorítimos?

Tanto no filme de Audiard quanto no de Jonze existem figuras que completam o tripé das relações ou são o gatilho para a catarse final. Em “Ferrugem e Osso” esse é o papel de Sam e, mais de leve, da irmã de Ali. Em “Ela” cabe à ex-esposa e em menor proporção, à melhor amiga que é o espelho. Nos dois filmes o sol aparece como uma perspectiva de renascimento e cura. A água é o ambiente das catarses (mais presente no filme francês). As trilhas sonoras ilustram e dialogam com os pontos cruciais dos filmes. As emoções expressas da forma que for, física ou verbalmente são as molas mestras das duas películas.

Em tempos de crise econômica no velho e no novo mundo, uma época em que as relações pessoais estão cada vez mais mediadas pela tecnologia, o trabalho e as cobranças por eficiência e perfeição afasta, silencia, padroniza o comportamento e as relações das pessoas que se afastam de sua humanidade e desaprendem a se comunicar. As interações se perdem em fórmulas ou espaços sem tradução. Afinal, as emoções precisam do corpo para serem aprendidas?

Em ambos os filmes, as relações reclamam ações efetivas para serem sustentadas e estas ações não se resumem numa carta de intenções, mas de vida vivida e experienciada com todas as dores e mutilações que o corpo e a mente costumam estar sujeitos: a vida não se constrói sem perdas. “Ferrugem e Osso” e “Ela” são belas películas que encorajam a coragem de viver, esbanjam poesia e sensibilidade e te fazem pensar por uns dias.

A selva do outro

 

 

 

O outro é a própria selva a se desbravar. Parece que espelhando nossa mente veremos o outro, mas é “ele” quem se vê em nós. Vê seus medos, vê sua raiva, vê a rejeição por algum desejo, alguma atitude que esperava de nós e não cumprimos. Somos uma selva a ser vencida e disciplinada segundo o olhar do outro. Mas não há facão que abra uma trilha nessa mata sem agredir e deixar marcas, sem deixar calos no agressor. E sem ele interromper a violência para tentar entender a penumbra. Sem se dar tempo para identificar as silhuetas e o traçado da trilha. É preciso olhar diferente o outro e perceber o comum na sombra. Entender essa miopia entre pares quando um espera e não alcança. Entender que nem todo silêncio é vácuo e nem todo espaço é distância. Pelo contrário, o intervalo é o arauto da distinção, a chave da compreensão. O outro está logo ali e sedento de afeição tanto quanto nós. O que queremos é compreensão e amparo. E compreender implica em saber trocar de lugar, se colocar no contexto desse outro, entender suas razões e seus equívocos, se ver neles e superá-los. A selva do outro não abre clareiras para quem quer incendiá-la, se assim for, ela morre para o algoz. Mas, se ao invés de impormos, ouvirmos e entendermos, as sombras se entregarão ao sol. Não haverá mistérios, nenhum lugar pra se esconder.

(21/3/14)

Imagem: Henri Rousseau –  “Il Sogno”

Querer dizer

A rede social na internet se resume em um grande querer dizer. As pessoas estão o tempo inteiro querendo dizer e significar os seus sentimentos, produzindo um noticiário de suas rotinas, pensamentos, dos pontos-de-vista sobre os fatos corriqueiros ou de interesse coletivo, tudo de forma dinâmica e contínua. O “quero dizer” no dito popular se apresenta também com o sentido de correção de algo mal expresso ou mal interpretado. E não se trataria disso tudo afinal? De um grande desentendimento? O discurso em poucos caracteres é por si só limitado, as interações mediadas tecnologicamente, apesar dos múltiplos formatos que se ofereçam, ainda são incompletas. A rede social diz e se “desdiz” a todo o momento. No montante das discussões e dos enunciados prevalecem os ruídos das distorções, que não são distantes da dinâmica “da vida como ela é” no universo ordinário do tete à tete. Entre os picos e os vales de contentamento, a “civilização” avança…

Ultimamente tenho apreciado o silêncio, ao menos, o meu silêncio. O volume de vozes advindas das interações proporcionadas pelas tecnologias de rede tem gerado um ruído branco no qual eu procuro sentidos, mas percebo mesmo a opacidade dos excessos. Ruído branco, segundo engenheiros de áudio, é “um tipo de ruído produzido pela combinação simultânea de sons de todas as frequências”. A saturação produz uma massa sonora ininteligível. O silêncio seria a quebra, o intervalo para o entendimento. É isso, deu branco! E na calma da sala branca saturada, em silêncio, eu me dispus a construir o meu próprio mosaico do entendimento sobre a ânsia do outro e seu “querer dizer”, ainda que nas entrelinhas. Ânsia que por vezes me contamina e a qual eu luto e fracasso neste instante.

Sabemos que nosso pensamento é contínuo e as redes sociais da web 2.0 se configuraram como uma plataforma do “pensar alto”. Na malha telepática da internet, o desafio é como editar a qualidade desse pensamento que se manifesta. Não importa a faixa etária, muitos a utilizam como um muro de lamentação, como um diário ou sala de terapia: o lugar de botar para fora, desembuchar. Outra maioria quer impor o que pensa. Outros tratam o perfil como um espaço de marketing. Não veste somente a camisa do próprio ego, às vezes forjado, mas a estende no varal do trabalho. Não acho necessariamente impróprio, pode ser uma necessidade imposta, mas vale o cuidado com a crise de múltipla identidade, incoerências que um minuto de conversa revelam.

Têm os que não querem dizer nada ou querem dizer nas entrelinhas para grupos. “Menes” (memes) da ironia nos códigos de amigos, desdizer para se fazer entender no simples prazer do cortejo do sarcasmo com o desentendimento: feliz de quem ri primeiro. Perspicácia ou adolescência? “Orgulho e preconceito” por aceitação…

Entre os que querem dizer muito e os que não necessariamente querem dizer alguma coisa, entre a pretensão de manipular o entendimento do outro ou de se divertir com essa (auto-?) ilusão, eu prefiro o delay do pensar dez vezes se é isso o que eu quero. Prefiro o silêncio de uma imagem, o desenhar de uma música ao desdenhar do outro (ou de mim mesma). Brincar com o ardor alheio não é um sopro de inteligência na própria ferida, embora infle muitos egos. Brincar com a própria tragédia é uma saída até elegante, embora um disfarce. A arena social, seja online ou pessoalmente, é um campo de contínua disputa colaborativa: salve-se quem puder. E que um dia salvem-se todos, eu torço por isso. A coerência entre o verbo ser e estar é o maior desafio da humanidade, quando ela a alcançar em sua plenitude será feliz (ou satisfeita), enfim. Há quem duvide desse dia.

O que quero dizer, neste momento, é que vou me fazer (des)entender permanecendo mais vezes e mais tempo com a solidão branca do meu silêncio. Em algum lugar deste limbo, através de todas as vozes, distinguo melhor a minha voz.

Amanhã será outro dia

(18/3/2013)

Imagem: Taekyeom Lee

Cultura na Rede – Matéria Revista E- SESC-SP

Cultura na Rede

 

A internet permitiu que bilhões de pessoas conectadas compartilhassem conhecimento e informação em escala ímpar. Essa colaboração revolucionou as formas de produção, distribuição e consumo de bens culturais. A chamada Crowd Economy, ou economia da multidão, inovou as formas de produção.

Os exemplos vão desde as diversas distribuições dos sistemas operacionais para computadores GNU/Linux e a enciclopédia on-line Wikipédia, feitos por milhares de colaboradores de diversas partes do mundo, até os sites de financiamento coletivo, em que projetos são viabilizados por um conjunto de pessoas interessadas na ideia. Já a distribuição cultural foi facilitada pelas licenças flexíveis do Creative Commons, que permitem que o autor licencie o acesso à obra para fins não-comerciais, por exemplo, e pelos streaming e download remunerados para o artista.

Um dos principais impulsos para a expansão dos sites de financiamento coletivo, ou crowdfunding, no mundo foi o sucesso do Kickstarter, site norte-americano, criado em 2009. No Brasil, o Ativaai, Queremos e Showzasso, voltados para shows, o Minimecenas e o Incentivador, focados em projetos culturais, e o Catarse, em iniciativas culturais, sociais e tecnológicas, são os mais conhecidos.

O funcionamento é simples. Depois do projeto cadastrado e aceito, o site cria uma página com a descrição da ideia, o valor que se pretende arrecadar e em quanto tempo. Há cotas de financiamento variáveis e recompensas para cada uma delas, como menção nos créditos, no caso de um filme, e cópia autografada, se for um livro. Caso o projeto não receba a quantia no tempo estipulado, os financiadores recebem o dinheiro de volta ou podem usá-lo como crédito para incentivar outro projeto. Nos sites exclusivos de shows, a dinâmica é um pouco diferente. Se o espetáculo for confirmado e a venda de ingressos chegar a um número determinado pelo projeto, quem contribuiu é reembolsado e pode assistir ao show de graça.

Novo modelo

Esses sites funcionam como nova possibilidade de captação de verba em relação aos tradicionais, como bancos, leis de incentivo culturais, empresas e dinheiro próprio. “Você sai dos guetos tradicionais de produção, que já são controlados por alguns grupos, para propostas como o crowdfunding em que o fã ganha, pois traz quem ele quer assistir, muitas vezes por um preço bem melhor, e o artista também ganha porque o dinheiro vai direto para ele”, afirma a mestre em comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e pesquisadora de música digital Patricia Rocha Junqueira.

De acordo com o diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Creative Commons no Brasil, Ronaldo Lemos, os sites de financiamento coletivo levam a lógica de cooperação da internet para o campo econômico. “As pessoas participam não apenas porque esperam um benefício, mas também para participar de uma comunidade e com isso fortalecer interesses específicos”, diz. “O crowdfunding é um bom exemplo do potencial de reorganização trazido pela internet, que conjuga incentivos não apenas financeiros mas também sociais.”

Criado em 2011 pelo estudante da FGV Diego Reeberg, em parceria com o então colega de faculdade, o administrador de empresas Luis Otávio Ribeiro, entre outros sócios, o Catarse já viabilizou mais de 170 ideias. Apesar de projetos de mais de 100 mil reais terem sido financiados pelo site, a maioria deles varia entre 10 mil e 20 mil reais.

“O Catarse é uma grande oportunidade para esta gama de projetos, já que as opções de financiamento nesta faixa são muito difíceis e reduzidas”, afirma Reeberg. Segundo ele, três pilares são fundamentais para que um projeto seja financiado: a paixão dos realizadores, o planejamento, que engloba o vídeo e a descrição, mas, principalmente, a comunicação do projeto quando ele tiver no ar e a rede de contatos da pessoa. “Um projeto, por mais que seja bem planejado e que a pessoa esteja empolgada, não vai para a frente se não houver uma mínima rede de contatos construída”.

Recém-formados em cinema pela PUC do Rio Grande do Sul, os amigos e parceiros profissionais Abel Roland, Emiliano Cunha, Iuli Gerbase e Lucas Cassales captaram recursos pelo Catarse para o projeto Ajuntamento Criativo, composto pelos curtas O Lobo, Abismo e Só Isso. A ideia era fazer filmes de baixíssimo orçamento e arrecadar verba suficiente para cobrir apenas os custos de produção, distribuição, de equipamentos de captação e materiais de arte.

“Esse tipo de financiamento é o caminho natural de uma juventude que foi criada na internet, com esse boom de informação que a tecnologia permite”, diz Cassales. “Essa aproximação torna possível que pessoas com os mesmos interesses, de qualquer parte do mundo, possam se organizar, e, claro, isso serve também para a arte.” O grupo já havia participado de editais com outros projetos, mas, dessa vez, resolveram apostar no crowdfunding pela urgência na realização dos filmes.

“Como tudo que envolve quantidades consideráveis de dinheiro, as leis de incentivo e os editais têm uma burocratização óbvia. Alguns editais já começaram a aceitar documentação on-line, o que é um passo interessante”, comenta Cassales. “Mas parece não haver ainda uma abertura por parte de quem escolhe os projetos, nos órgãos encarregados pela cultura, para vários jovens que estão fazendo cinema há alguns anos. Vejo muita gente indo fazer seus filmes por conta própria, mas não são todos que se enquadram neste modelo de produção de baixo orçamento.”

Segundo o professor de Tecnologia da Inteligência e Design Digital da PUC de São Paulo e curador do Vivo arte.mov –  Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis, Marcus Bastos, o crowdfunding não é mais uma ferramenta exclusiva dos realizadores que não têm acesso ao circuito. “Ele está sendo usado por pessoas que já estavam no circuito e vislumbram uma alternativa para financiar trabalhos”, afirma.

Como é o caso do cineasta Daniel Lisboa, que tenta financiamento para seu novo curta-metragem Tesourada; a peça As Três Velhas, dirigida pela consagrada atriz Maria Alice Vergueiro, viabilizada pelo Catarse; e a re-encenação do espetáculo A Menina e o Vento, em comemoração aos 60 anos do Tablado, grupo teatral criado pela dramaturga Maria Clara Machado, em fase de captação.

De acordo com Reeberg, essa prática deve se popularizar no Brasil à medida que o número de pessoas que fazem pagamentos pela internet aumente. “Os produtores culturais e os artistas estão passando a conhecer o modelo. Não teve um boom no Brasil, mas o crescimento tem sido muito orgânico. Acredito que a tendência, assim como aconteceu nos Estados Unidos, é que o mercado aumente”.

Compartilhar é preciso

Apesar da importância das novas formas de financiamento culturais, a verdadeira revolução que a internet propiciou está na produção e distribuição de áudio, vídeo e texto. Segundo Patricia, a rede permitiu que os artistas entrassem em contato uns com os outros, facilitando trocas de informações técnicas a respeito de softwares musicais, o compartilhamento de músicas e a abertura de espaços de mercado.

“Neste contexto, os fóruns, redes P2P [arquitetura de sistema caracterizada pela descentralização das funções da rede, onde cada usuário pode tanto fornecer quanto receber conteúdo] e as redes sociais de música, como o MySpace e o SoundCloud, por exemplo, foram fundamentais para a autonomia criativa e produtiva dos músicos”, afirma.

De acordo com Bastos, a distribuição de vídeo e áudio por meio do streaming – tecnologia em que o arquivo é reproduzido, mas não armazenado pelo usuário, similar à lógica de transmissão do rádio – ou da web 2.0 – reconfiguraram radicalmente modelos até então baseados em circuitos de difusão de festivais e shows.

“A internet gerou novos circuitos”, diz. “Foi uma democratização, uma possibilidade de as pessoas fazerem os trabalhos circularem de forma muito mais diversificada e internacionalizada, permitindo, por exemplo, que artistas independentes atingissem um público que eles tradicionalmente não conseguiriam.”

O compartilhamento de arquivos on-line teve impacto direto na indústria fonográfica e cinematográfica. O Napster, programa de compartilhamento de arquivos em rede P2P, foi um dos casos emblemáticos do embate entre os novos modelos de circulação de música, via downloads de MP3 gratuitos, e a tradicional venda de CDs. O serviço foi fechado após gravadoras e bandas processarem os criadores por promover pirataria e possibilitar a troca de arquivos de áudio protegidos por direito autoral.

“Dizer que a troca de arquivos funciona como pirataria é uma forma de a indústria fonográfica tradicional desmotivar este modelo de prática cultural próprio da internet, que desfavorece o modelo que ela tinha, muito fechado em seus gargalos”, afirma Patrícia. Atualmente, o download e streaming gratuitos de músicas licenciadas pelo Creative Commons ou pagos são os novos paradigmas de compartilhamento que não infringem os direitos autorais.

Apesar da iTunes Store, maior loja on-line de áudio e vídeo do mundo, usar o download para a venda de produtos, há um interesse das gravadoras e uma tendência no mundo digital que favorecem o streaming. Esta forma de distribuição de informação faz parte do conceito cloud computing em que o acesso a dados, arquivos e programas é feito via internet, de qualquer computador, sem a necessidade da instalação de programas ou armazenamento de informações.

“Existe uma tendência a reduzir o tamanho da máquina, das memórias e um interesse comercial de transferir para cloud, porque desta forma as empresas têm mais controle do tráfego de conteúdo e fica a critério delas como e quando o consumidor vai acessá-lo. Isso muda a prática do usuário de consumir na rede, porque ele é obrigado a assinar algum serviço”, afirma Patrícia.

“Ao mesmo tempo, existe uma adesão social muito grande e uma necessidade por parte do consumidor pela posse material do arquivo, mesmo que ele seja digital, além da autonomia de consumo da qual o usuário não vai querer abrir mão. Então, o futuro depende da aceitação e prática social com relação às tecnologias que estão sendo lançadas e das leis que forem aprovadas.”

O produtor da banda Móveis Coloniais de Acaju e pesquisador das relações entre música e internet, Fabrício Ofuji, aposta que os diferentes formatos de distribuição de música devem coexistir no futuro próximo. “Há quem prefira pagar pela música, existe a facilidade do acesso no smartphone e a pessoa pode obter a música vinculada a outro produto, como comprar um aplicativo e ganhar a música”, comenta.

“Oferecemos o álbum C_mpl_te em cinco formatos, em CD especial em caixa de papelão, na caixa normal acrílica, em um envelope mais barato, gratuito para download e streaming na internet e temos procura por todos eles. É uma questão de diferentes públicos.” Esse disco faz parte do projeto Álbum Virtual, uma iniciativa da gravadora Trama, em que o público pode ouvir e baixar o álbum de maneira legal e gratuita e o artista é remunerado por patrocinadores.

O C_mpl_te é um dos projetos com mais downloads no site da gravadora, com mais de 1 milhão de músicas baixadas. “É interessante porque conseguimos o apoio financeiro das marcas, mas sem a interferência delas, o que nos dá independência artística”, diz Ofuji.

O professor Marcus Bastos acredita que a internet nunca vai se padronizar e que os formatos híbridos sempre existirão. “Por outro lado, as tentativas mais recentes de ?regulamentação, como SOPA e PIPA [Stop Online Piracy Act e Protect Intellectual Property Act], vieram com uma contundência muito maior em relação às ofensivas do Napster, por exemplo, de maneira a segurar a tendência da rede a certa anarquia de formatos e distribuição”, esclarece.

“De qualquer forma, a internet é o espaço da heterogeneidade e dá a impressão de que as próprias empresas de tecnologia vão resolvendo de alguma maneira os problemas, muitas vezes se antecipando às legislações.” De acordo com ele, quando todas as gravadoras pensavam formas de distribuir música online, a Apple fez o Itunes e a Apple Store e resolveu o impasse. “Um monte de gente continuou fazendo download de MP3, mas muitas outras pessoas passaram a consumir por meio da loja, pois era barato e fácil. Deve acontecer algo similar com filmes”, diz.

Autonomia tecnológica

Conheça algumas iniciativas do programa de Cultura Digital do Sesc

O Sesc oferece diversas atividades que abordam o caráter sociopolítico da tecnologia, arte digital e eletrônica. Nos projetos Hacklab Pompeia e Hacklab Leste, realizados nas unidades Pompeia e Belenzinho, a ideia é estimular criações coletivas, experimentações e reflexões sobre arte e tecnologia.

Há oficinas de desenvolvimento de circuitos eletrônicos com o microcontrolador Arduíno e de criação de objetos de iluminação e peças decorativas a partir de materiais reciclados, utilizando, por exemplo, LEDs e baterias. “Trabalhamos o hacking, o hackear, no sentido do desvio da função da tecnologia, da adaptação da tecnologia a diferentes fins, o objetivo é estimular o senso crítico do indivíduo em relação ao uso de equipamentos digitais e eletrônicos”, afirma a assistente da Gerência de Ação Cultural para a área de Cultura Digital, Melina Marson.

Também no Belenzinho, o bate-papo Da Música Eletroacústica ao Concerto com Laptop, em 19 de maio, abordará os festivais que misturam música, arte e tecnologia e as galerias que expõem arte sonora para discutir como a estética eletroacústica se relaciona com o digital e a internet na criação e fruição culturais.

Até junho, no Ipiranga, acontece o Ruas e Redes, em que é explorada a relação dos gadgets com os espaços públicos. Uma das atividades é o jogo Campo Minado, do artista Cláudio Bueno, em que o participante tem que percorrer um trajeto estipulado na cidade desviando das minas com o auxílio de um GPS.

Já na unidade Pinheiros, em abril e maio, o Empreendedorismo Digital tem como foco o uso da internet para a capacitação de pessoas e geração de renda, com atividades de construção e monetização de blogs e desenvolvimento de startups virtuais. “A ideia que norteia a programação é trabalhar com uma perspectiva crítica sobre o uso ou consumo das tecnologias que estão disponíveis no cotidiano”, diz Melina.

Já no canal de vídeos do Portal Sesc SP, estão disponíveis, sob licença Creative Commons, mais de 4.500 vídeos. Reunidos no endereço youtube.com/portalsescsp, o material conta com mais de 4 milhões de visualizações.

Saiba mais em:
www.ativaai.com.br
www.catarse.me
www.creativecommons.org.br
www.incentivador.com.br
www.minimecenas.com.br
www.queremos.com.br
www.showzasso.com

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Revista E – SESC-SP – Matéria de capa – Maio de 2012 –  Nº180

FONTE: https://www.sescsp.org.br/online/artigo/6133_CULTURA+NA+REDE