Relacionamento é que são Elas

 

por Patricia Rocha

 

Em um verão quente, seco e sem mar – pelo menos para mim que não tive férias e moro longe da praia, o jeito foi assistir filmes para matar o tempo livre e não pensar no calor. No cinema, blue ray ou no computador, percorri vários títulos interessantes, mas dois em especial chamaram-me a atenção, justamente pelos pontos que possuem em comum, pontos talvez não tão perceptíveis em um primeiro momento, mas me entrego à missão de entrelaçá-los ou traçar paralelos aqui. É recomendado que os leitores tenham assistido aos filmes, pois o que se desenrola aqui embaixo é uma reflexão sobre os seus conteúdos com direito a muitos spoilers.

Um dos filmes em questão foi aclamado em Cannes e indicado para inúmeros prêmios em diferentes festivais, entre eles “melhor filme” e “melhor atriz”, mas acabou passando batido no Oscar: Ferrugem e Osso (De rouille et d’os), produção francesa de 2012 dirigida por Jacques Audiard e protagonizada por Marion Cotillard e Matthias Schoenaerts. O outro é Ela (Her), um dos candidatos ao Oscar de 2014, dirigido por Spike Jonze e estrelado por Joaquim Phoenix, Amy Adams, Rooney Mara e Scarlett Johansson (voz).

De formas diferentes, ambos os filmes tratam de relacionamentos frustrados ou sofríveis, da falha de comunicação ou da dificuldade de transcendência e, por que não, de uma silenciosa crise de afetividade presente na contemporaneidade – ainda que representada pelo “futuro”, no caso de “Ela”? São ficções que flertam com o romance e o drama, mas estão travestidos de melodrama (Ferrugem e Osso) e ficção científica (Her). Com poéticas direções de arte, os dois filmes dependeram muito da atuação sensível e minuciosa de seus protagonistas e foram bem sucedidos nesse quesito, um deslize poderia ter colocado em descrédito seus personagens e o enredo, o que não aconteceu.

“Ferrugem e Osso” conta uma história de superação e redenção a partir da relação de um casal improvável: um ex-lutador de box tailandês – Ali (Schoenaerts) – e uma adestradora de orcas – Stéphanie (Cotillard), que sofreu a amputação de suas duas pernas abaixo do joelho depois de um grave acidente de trabalho. O que se desenvolve é um processo de cura e superação de cada um dos dois em suas dificuldades pessoais, movidos pela cumplicidade e apoio, mas de uma maneira casual e pouco romântica, expondo tanto a intimidade que cresce quanto as feridas mal curadas. A relação só progride na base do enfrentamento do medo e da dor, a coragem é o que sustenta essa parceria e as ações substituem o diálogo. Nos seus embates físicos e psicológicos ambos se reconhecem e se respeitam, com poucas palavras constroem entre si a ternura, mesmo que esta não fizesse parte nos planos da razão.

“Ela” também aborda um romance estranho: um escritor de cartas sensíveis para terceiros – Theodore (Phoenix) e um sistema operacional autônomo e inteligente que se autodenomina Samantha (Johansson). Theodore estava deprimido e solitário, passando por um processo de divórcio indesejado e sem volta quando descobre a tecnologia do OS1, o sistema operacional inteligente. Samantha se apresenta como uma grata surpresa, entusiasmada, divertida, cúmplice, o ajuda a superar os maus bocados de sua separação e a reconstruir sua auto-estima, reorganizando a sua vida profissional e até afetiva.

Depressão, cumplicidade, encorajamento e muitas palavras. Aqui um contraste entre os filmes. “Ela”, assim como “Ferrugem e Osso”, é um filme que diz muito pelo visual, mas ao contrário do primeiro tem no vasto diálogo sua principal âncora de reflexão. No filme de Audiard os diálogos não são pouco importantes, são crus e árduos como o próprio filme e enredo, quase possuem textura física, mas não funcionam se não costurados aos outros elementos (arte, montagem, trilha sonora). Os corpos se tocam, se contorcem, se ferem, se esfregam, se amam. Escutamos ruídos, gemidos, silêncio e música pop, a apreensão do filme é um quebra-cabeças que exige mais de uma sessão de degustação, embora o amargo sabor de ferro. Em “Ela” temos também música pop, mas primordialmente as reflexões são ditas. E são tão presentes e tão bem costuradas com as informações visuais que o replay se dá por prazer, tão doce e perigoso quanto bala soft (aqui os que nasceram nos anos 80 devem se lembrar da balona deliciosa, colorida e escorregadia que engasgava as crianças). Sim, “Ela” pode deixar muito marmanjo engasgado…

Gênero e corporeidade são temáticas abordadas direta e indiretamente nas duas películas. Stéphanie e Theodore são os “curados” por suas mutilações físicas e emocionais. Ambos estavam acostumados com os seus trabalhos a lidarem com a comunicação, no caso de Stéphanie, a gestual (adestramento), no de Theodore, a escrita. Ali e Samantha são os agentes de cura que se transformam e crescem com suas relações. Stéphanie aprende a viver com a sua amputação, a se sentir capaz, motivada, atraente, novas formas de fazer sexo, uma nova “profissão” (agente de lutas). E como mulher, aprende – não sem dor e desencontros, o idioma masculino das ações e da linguagem corporal, sem falar do machismo manifestado por Ali em vários momentos, como na forma em que leva suas relações casuais, apenas interessado na satisfação sexual. Theodore experiencia fisicamente a sua relação virtual ao sair pelas ruas com seu Sistema Operacional ligado, o casal performa uma relação amorosa através do diálogo. E fiel à virtualidade de sua relação parece evitar o contato físico com outras mulheres, seja com a “candidata a caso” ou com a “parceira-física-avatar”, todas indicadas por Samanthas em momentos e circunstâncias diferentes. E seria o corpo o legitimador de emoções? O que importaria mais, a forma mediadora ou a vivência destas emoções? Entre a super inteligência racional e questionadora de Samantha e o corpo de Theodore, quem é o mais masculino nessa relação? As suas cartas são tão sensíveis que conseguem tocar o coração de seu colega de trabalho que declara que Theodore possui uma “garota” dentro dele. Em vários momentos de “Ela” acontecem provocações sobre os papéis de gênero: as falas do alienígena misógino do joguinho, o jogo feito por sua amiga (Adams) que treina mulheres para serem “mães perfeitas”. O filme desafia a reflexão, quem são mais programados, os humanos orgânicos e seus papéis sociais ou as máquinas imateriais e seus algorítimos?

Tanto no filme de Audiard quanto no de Jonze existem figuras que completam o tripé das relações ou são o gatilho para a catarse final. Em “Ferrugem e Osso” esse é o papel de Sam e, mais de leve, da irmã de Ali. Em “Ela” cabe à ex-esposa e em menor proporção, à melhor amiga que é o espelho. Nos dois filmes o sol aparece como uma perspectiva de renascimento e cura. A água é o ambiente das catarses (mais presente no filme francês). As trilhas sonoras ilustram e dialogam com os pontos cruciais dos filmes. As emoções expressas da forma que for, física ou verbalmente são as molas mestras das duas películas.

Em tempos de crise econômica no velho e no novo mundo, uma época em que as relações pessoais estão cada vez mais mediadas pela tecnologia, o trabalho e as cobranças por eficiência e perfeição afasta, silencia, padroniza o comportamento e as relações das pessoas que se afastam de sua humanidade e desaprendem a se comunicar. As interações se perdem em fórmulas ou espaços sem tradução. Afinal, as emoções precisam do corpo para serem aprendidas?

Em ambos os filmes, as relações reclamam ações efetivas para serem sustentadas e estas ações não se resumem numa carta de intenções, mas de vida vivida e experienciada com todas as dores e mutilações que o corpo e a mente costumam estar sujeitos: a vida não se constrói sem perdas. “Ferrugem e Osso” e “Ela” são belas películas que encorajam a coragem de viver, esbanjam poesia e sensibilidade e te fazem pensar por uns dias.

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