À luz do tempo

Foi gratificante experimentar o ar gelado do outono me sugerindo um autoabraço, enquanto eu procurava uma posição confortável para o meu pescoço. Eu queria estar à vontade para apenas encontrar o céu. O lençol azul marinho se estendia generoso e estampado sobre a cidade, e ela, em reflexo, respondia com suas luzes postas.

Depois de testar ângulos diferentes que não fossem rasgados pela iluminação do poste, encontrei um canto favorável à observação. A chuva de meteoros de Líridas riscaria a madrugada de quarta, trazendo um pouco de ar fresco para os nossos pulmões sôfregos de ansiedade, devido à pandemia do novo coronavírus. Bom, era uma programação diferente da habitual, pelo menos aos plantonistas insones que não dormiam tranquilos na noite da ignorância. Ou àqueles que são os da primeira manhã, que após o sono dos justos, testemunhariam a saudação do cosmos a mais um dia de trabalho.

Após achar um bom lugar de frente para o cruzeiro do sul, mergulhei na música que tocava no fone de ouvido e relaxei. Nada cruzava o firmamento, a não ser meus olhos. Nem aves ou aeronaves, somente eu ali, fitando o passado. A luz que chega até nós vindas daqueles pontinhos estelares é de um ontem tão distante que nunca amanhece. Cogitar o momento presente daqueles corpos me faz lembrar que alguns deles talvez nem existam mais. Olhar o passado presente nas estatísticas da pandemia nos desconcerta: dados de acontecimentos referentes a duas ou três semanas atrás tomados como “atuais”, enquanto outros tantos números se perdem no breu das subnotificações de tendências exponenciais, que como as luzes tardias que se apagam no infinito, são camuflados aos olhos nus e meramente humanos.

Eu não via nenhum meteorito cair, mas eu sabia que passariam por lá. Assim foi todas as vezes que quis assistir ao evento. Ora as nuvens, ora a chuva, ora a altura da hora, não importa o impedimento, eu não alcançava o meu objetivo, ano após ano. Era como uma promessa que não conseguia se cumprir, parecia um conto, uma ficção. Minha fé seguia viva no fenômeno, embora para muitos, sem o concreto, não há crença. E da mesma forma que a névoa incandescente da metrópole me roubava o manto negro do espaço e as chances de sucesso, a calmaria da dor invisível de uma pandemia aparentemente “distante”, contada nas telas, distraia a multidão da escuridão da morte, onde quer ela que houvesse.

Para lidar com a minha frustração momentânea, avaliei se eu não estaria procurando no lado errado, se distraída ao trocar de música no dispositivo, as estrelas cadentes, sorrateiras, me fintassem o olhar. Houve uma vez, sem nenhum plano ou preparo, sem data, sem cadeira de praia ou colchonete, sem luneta ou lua nova, ao sair para por o lixo para fora, na velocidade de um relance, vupt! Uma estrela caiu. Logo me apressei e guardei o meu desejo, com os olhos bem apertados, como se essa compressão urgente fosse capaz realizá-lo. Teria sido eu atraída àquele evento? Talvez eu tenha aumentado a minha sorte num ato de disciplina, pois, desde criancinha, sob qualquer pretexto, visitava o quintal todas as noites para buscar o céu.

Cada um de nós faz o seu próprio caminho. E alguns, levados pelo desejo abafado de vivenciar, persistem convictos em si mesmos e alheios aos alertas e orientações da mãe amorosa, do pai cauteloso, do amigo carinhoso, do professor zeloso, da ciência especialista, da lei que orienta, da razão que norteia e de todos os entes responsáveis, incubidos do dever de cuidar. São estes que teimam os que demandam inconscientemente a tatuagem da experiência, por mais áspera e dolorida que ela seja, para introjetar o sentido do conhecimento e transformá-lo em sentimento. Inevitável é a queda das águas que bailam à beira do abismo antes de se transformar em cachoeira e ir regar outros remansos.

Foram quarenta minutos velando o céu até eu entender que o evento agendado da quarentena não me vestiria tão bem quanto as cobertas quentinhas e o abraço do meu companheiro. Voltei para a tranquilidade e o conforto do quarto, sabendo que horas depois eu me serviria da claridade e do calor da nossa estrela-mãe à intimidar o frio suave do outono, no nosso presente vívido e concreto. Ao inverno do porvir, a temperatura de sua véspera.

Antes de entregar o corpo ao repouso e os olhos aos sonhos, fiz um pedido com a força de um coração que batia bem apertado: era uma oração.

 

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